Maior e mais surpreendente naufrágio da costa brasileira desde o seu afundamento até ser quase que completamente coberto pelo banco de Santo Antônio.
No dia 19 de setembro de 1980 partia de Salvador em direção à Brighton na Inglaterra carregado com 16.800 toneladas de ferro-gusa o enorme cargueiro grego Cavo Artemidi com seus 180 m de comprimento.
Contando com a economia de CR$ 3.000,00 o comandante do Artemidi, Anastassios Tsilikounas recusou o serviço da praticagem e dos rebocadores e como a Lei de Murphy não perdoa, as fortes correntezas da baía de Todos os santos acabaram por arrastar o navio que acabou perdendo o leme ao bater no banco da Panela no interior da baía , o navio então derivou e acabou encalhando no banco de Santo Antônio na saída da baía.

Durante alguns dias rebocadores e o navio de resgate da Marinha Brasileira, Gastão Montinho, tentaram de todas as formas salvar o navio, porém sem sucesso e uma semana após o encalhe, por conta do peso da carga, da força da água nas fortes correntezas de maré e das condições meteorológicas nada favoráveis as chapas de aço começaram a abrir e fazer água e por fim o cargueiro foi à pique.
A profundidade do local do afundamento nesta época era de pouco mais de 30 metros e por conta disso o castelo de popa se manteve à flor d ‘ água por algum tempo até ser desmantelado.

Nos anos seguintes várias expedições, autorizadas e não autorizadas foram empreendidas para o resgate de peças do navio, tendo em 1982 a empresa Villafer arrematado em leilão os direitos de exploração dos destroços, direito que em 1984 foi repassado para a empresa Hernandes Anticorrosão e Pintura. Nesse período os exploradores fizeram cortes de maçarico nas estruturas para abrir os porões e permitir a retirada dos lingotes de ferro-gusa que haviam se fundido por conta da corrosão.

Não faltam relatos sobre as ações de mergulhadores lendários de Salvador desbravando os corredores e os porões do navio recuperando peças de bronze, cobre, prataria e muito mais … até lendas sobre uma das pás do enorme hélice que enquanto era rebocada à m eia água para não chamar atenção acabou se soltando e se perdeu no meio do caminho.

Nos anos 1990 com a “febre” do mergulho recreativo Salvador chegou a ser destino de desejo da maioria dos mergulhadores do país que queriam conhecer aquele enorme navio, com pouco mais de 160 m de comprimento, ainda intacto, em uma profundidade que variava entre 16 m e 30 m, em uma água cuja temperatura variava entre 27ºC e 30ºC e uma visibilidade que nos piores dias ultrapassava os 15 m na horizontal e nos dias de maré morta passava dos 40 m, em alguns dias inclusive parecia que estávamos mergulhando em água mineral.

A biodiversidade era uma atração à parte, raias-chita (Aetobatus narinari), raias-prego (Hypanus americanus), cardumes de salemas (Anisotremus virginicus), sororocas (scomberomorus regalis), milhares de budiões-fantasma (Clepticus brasiliensis), cardumes gigantescos de quatingas (Haemulon aurolineatum), meros (Epinephelus itajara) [isso mesmo, no plural], bijupirás (Rachycentron canadum), caramurus (Gymnothorax funebris), mangangás (Scorpaena plumieri), boquinhas (Paranthias furcifer), cardumes de galos (Selene sp.), de xaréus (Carangoides sp. e Caranx sp.), dentões (Lutjanus jocu), jabus (Cephalopholis fulva), borboletas (Chaetodon striatus), parus (Pomacanthus paru), frades (Pomacanthus arcuatus), tricolors (Holacanthus ctricolor), ciliares (Holacanthus ciliares), budiões (Scarus sp. e Sparisoma sp.), rufus (Bodianus rufus), budiãozinho-verde (Halichoeres poeyi), budiãozinho-de-Noronha (Thalassoma noronhanum), enxadas (Chaetodipterus faber), barbeiros (Acanthurus sp.), cardumes de peixes-folha (Aluterus sp.), rêmoras (Echeneis naucrates), sargentinhos (Abudefduf saxatilis), marias-pretas (Stegastes fuscus), pescadinha-de-pedra (Odontoscyon dentex), barrigudinhos (Pempheres schomburgki), fogueirinhas (Myripristis jacobus), xiras (Haemulon squamipinna), biquara (Haemulon parra), jaguaraçás (Holocentrus adscensionis), garoupinhas-gato (Epinephelus adscensionis), badejos (Mycteroperca bonaci), enormes baiacus-espinho (Diodon hysrrix), grama (Gramma brasiliensis), cromis (Chromis multilineata), pinhanhas (Halichoeres brasiliensis), polvos (Octopus vulgaris), tartarugas (Chelonidae), e isso é só o que consigo lembrar sem precisar olhar as anotações ou as fotos e vídeos de recordação, mas não se limitava a somente estas espécies, inclusive desde a década de 1990 com mais de 700 horas de mergulho na baía de Todos os Santos foi o único ponto de mergulho da baía onde encontrei, em uma única oportunidade, um lambarú (Gynglimostoma cirratum).

O Cavo Artemidi foi construído em 1959 quando recebeu o nome de batismo de Betty incorporando a empresa de navegação Skibs A/S Kim (Oslo) até ser adquirido em 1978 pela empresa grega Lydy Naviera quando recebeu o nome de Cavo Artemidi.

Não era incomum ao longo de alguns anos chegar para mergulhar no Cavo Artemidi e encontrar 3 ou 4 outros barcos de outras operadoras já fundeados e prontos para mergulhar, cada um dos barcos com sua lotação máxima, era a principal atração de mergulho de Salvador e mesmo com tanta gente em baixo d’ água, por conta do seu enorme tamanho (180 m de comprimento) e das mais variadas rotas possíveis permitindo desde mergulhadores básicos mergulharem sobre o convés entre 12 m e 16 m de profundidade aos mais avançados mergulharem próximo ao eixo do hélice, nos porões de carga, na praça de máquinas, dormitório, “salão das pias”, corredores laterais, banheiros …
O Artemidi chegou a ter matérias enormes mais de uma vez nas principais revistas de mergulho do país, em algumas destas sendo inclusive capa em mais de uma oportunidade, Scuba, Mergulhar e Deco Stop, além de outras revistas de fotografia, turismo e meio ambiente como a Caminhos da Terra e a Fotographos, entre outras. Era a meca do mergulho costeiro no Brasil.
Como tudo que é bom, dura pouco, uma vez que o navio naufragou na borda de um banco de areia móvel, com o passar dos anos e graças às fortes correntezas de vazante na boca da baía de Todos os Santos a areia do banco de Santo Antônio a areia foi se depositando aos poucos sobre a ao redor do navio.
O primeiro trecho a sumir foi o porão de proa, depois as paredes dos porões desabaram e a areia passou a tomar conta dos outros porões e em todo o redor do navio reduzindo a profundidade máxima até em 2016 cobrir todo o convés.
No início de 2019 apenas uma pequena estrutura na proa e parte do que restava do casario que ora é coberto e ora descobre estavam visíveis e provavelmente assim se mantém já que o nível do topo do banco de areia já havia sido alcançado.

O mergulho no Cavo Artemidi ainda é possível e talvez seja um mergulho ainda fantástico, muito melhor do que em muitos outros naufrágios que recebem ainda uma grande quantidade de visitantes, porém em termos de porcentagem como o que sobrou do navio é tão pouco em relação à imensidão que era, a magia se quebrou e faz alguns anos que nenhuma operadora de mergulho lhe faz uma visita.

Em 2008 fiz um mergulho no Cavo Artemidi e no costado de bombordo, protegido por umas chapas caídas encontrei um coral diferente, uma espécie que eu nunca tinha visto antes, fiz fotos fui verificar na literatura … esse foi o primeiro registro de coral-sol (Tubastraea sp.) na baía de Todos os Santos.

O coral-sol do Cavo Artemidi gerou uma polêmica em 2012, quando menos de 20% do navio ainda não havia sido soterrado pelo banco de Santo Antônio e as visitas ao navio já eram bem raras, em um Workshop destinado a discutir ações para erradicação do coral invasor na baía de Todos os Santos se cogitou a ideia de pleitear com algum empreendimento que estivesse realizando dragagem na baía depositasse o sedimento sobre o naufrágio a fim de erradicar o então mais importante foco de disseminação do coral-sol em nossas águas e incluir como condicionante à este empreendedor custear todos os estudos e operação para o afundamento de outra embarcação em local próximo (opções não faltavam à época).

A hipótese de uma intervenção no Cavo Artemidi gerou comoção e inclusive uma nota tendenciosa no Jornal A Tarde no mesmo ano do Workshop, assinada por um não mergulhador utilizando-se de um pseudônimo, colocando em cheque a credibilidade dos profissionais que participaram do workshop com a teoria de que estes pesquisadores queriam acabar com o mergulho baiano (oi?).

O resultado das manifestações contrárias a qualquer reação contra o coral-sol no naufrágio do Cavo Artemidi foi que qualquer esforço nesse sentido acabou sendo abortado, o navio acabou soterrado pela própria natureza mas antes disso ele continuou dispersando as larvas do coral-sol para o interior da baía que hoje se encontra em uma situação cuja extinção do coral invasor já não é mais possível, já não se tem o Cavo Artemidi como destino de mergulho (já não se tinha à época) e nenhum novo ponto de mergulho semelhante surgiu ou foi descoberto e hoje qualquer ação para o afundamento de um novo navio não pode ser mais realizada sem antes um estudo mais aprofundado e um plano bem estruturado para o controle da colonização por conta desse coral. Com isso, perdemos todos!

Talvez seja o momento, após esse período de isolamento social e impedimentos de mergulhos, de fazer uma visita ao navio. Os últimos relatos comentavam que o local se apresentava como um oásis, uma pequena ilha riquíssima em biodiversidade e em um local de água azul, imagina agora após essa calmaria de tráfego de embarcações na baía? E aí, quem topa conhecer ou reconhecer o Cavo Artemidi?

FONTES
Brasil Mergulho. Cavo Artemidi [Link]
Carvalho, M. (atualizado em 2019). Naufrágio Cavo Artemidi. Naufrágios do Brasil [LINK]
Lettens, J. 2008. MV Cavo Artemidi [+1980] [Link]
Mayrink, C. Cavo Artemidi. Brasil Mergulho [Link]]
Rezende, E. 2016. No fundo do mar azul. Jornal A Tarde [Link]
Trindade, F.M. 2008. Cavo Artemidi – Um mergulho pra não esquecer. Brasil Mergulho [Link]
Relatório do Inquérito Naval sobre o afundamento do Cavo Artemidi disponível no site do Mergulho Brasil [PDF]

Autor(es)
Mergulhador e apaixonado pelos oceanos desde a infância.
Desde a década de 1990 está envolvido em ações e pesquisas relacionadas com a biota aquática, tendo sido coordenador de resgate do Centro de Resgate de Mamíferos Aquáticos (CRMA) do Instituto Mamíferos Aquáticos (IMA) e fundador do Centro de Pesquisa e Conservação dos Ecossistemas Aquáticos (Biota Aquática) e do EcoBioGeo Meio Ambiente & Mergulho Científico, e ao longo dos anos participou de projetos de pesquisa e de consultoria na ambiental em parceria com diversas instituições.
Também atua como instrutor de mergulho SDI e PADI.
Tem como objetivo, além de produzir informação de qualidade fomentar o reconhecimento e a qualificação dos mergulhadores científicos.
Fiz parte de e uma equipe de heróis como Mergulhador no resgate da carga o “ferro gusa”. No início era tudo precário, muitos sem experiência desde tipo de remoção dedds caraga. No início, uma morte anunciada de um colega mergulhador, tudo por falta de um plano de ação. Íamos aprendendo a cada dia. Por sorte, situações mais graves não surgiram. Cada um Mergulhador tem uma história pra contar. No final, tudo deu certo.
Acompanhamos todo naufrágio, desde o encalhamento no banco da panela em 1980. Eram duas equipes de mergulho, uma do Rio agrande do Norte e a outra de Salvador.