Quem é o Cação no mercado?

Diversas pesquisas publicadas nos últimos anos revelam através de análise de DNA que diversas espécies de peixes, em especial os tubarões e as raias, são comercializadas como sendo de outras espécies a fim de enganar a população entregando peixes mais baratos comercialmente como se fossem peixes mais valorizados, ou a fim e vender espécies ameaçadas e cuja comercialização é proibida como se fossem espécies em menor grau de ameaça e sem proibições de comércio (Jacquet e Pauly, 2008; Wong e Hanner, 2008; Barbuto et al, 2010; Almerón-Souza et al, 2018; Bernardo et al, 2020).

Pesquisadores brasileiros publicaram este ano um artigo que denuncia que o rótulo “cação” é empregado de forma irregular em embalagens onde pode ter carne de diversas espécies de tubarões e de raias sob esta alcunha e inclusive de espécies ameaçadas de extinção e cujo comércio é ilegal, o que dificulta o monitoramento e a fiscalização de quais espécies estão realmente sendo comercializadas (Bernardo et al, 2020).

Cação-frango (Rhizoprionodon sp.), um típico “cação” na costa soteropolitana (Foto: Rodrigo Maia-Nogueira)

Nesta pesquisa descobriram que o termo “cação”, que é o nome popular dado a alguns dos elasmobrânquios (tubarões e raias) da costa brasileira, vem sendo utilizado nas embalagens de 16 diferentes espécies de elasmobrânquios, das quais 12 são espécies de tubarões e 4 de raias, sendo que 43% das espécies registradas nesse estudo que estão sendo vendidas como cação representam espécies listadas em alguma categoria de risco de extinção da IUCN como o Tubarão-mangona (Carharias taurus), o Tubarão-lombo-preto (Carcharhinus falciformes), o Tubarão-martelo (Sphyrna lewini), o Tubarão-martelo-liso (Sphyrna zygaena) e o Cação-anjo (Squatina guggenheim). E uma pesquisa publicada em 2018, também realizada por pesquisadores brasileiros detectaram entre as amostras comercializadas como sendo “cação”, “Caçonete” ou “Filé de anjo” (que supostamente se refere aos Cações-anjo do Gênero Squatina) carne de duas espécies de peixes ósseos, do Espadarte (Xiphias gladius) e do Bagre-branco (Genidens barbus) (Almerón-Souza et al, 2018).

No Brasil a determinação da(s) espécie(s) que compõe(m) o produto em qualquer mercadoria de origem animal comercializada embalada é obrigatória segundo o Regulamento Técnico para Rotulagem de Produto de Origem Animal Embalado regulamentado e publicado em Anexo  à Instrução Normativa Nº22 de 24 de novembro de 2005 que também define que as denominações geográficas e nomes populares, uma vez que variam de região para região dentro do país, a fim de evitar a indução do consumidor ao engano e ao erro, são proibidos. Este mesmo instrumento legal define que é de responsabilidade da empresa processadora do produto a determinação da espécie e inclusão da informação no rótulo.

O cação é o nome popular dado a algumas espécies de tubarão da família Cacharhinidae, em especial aos Cações-frango (Rhizoprionodon lalandii e Rhizoprionodon porosus), aos tubarões da Família Triakidae, em especial do Gênero Mustelus e Cações-viola (Pseudobatos spp.) no litoral Norte e Nordeste do país e no litoral Sul além destes incluem algumas espécies do Gênero Carcharhinus e o Tubarão-azul (Prionace glauca).

As confusões e maus usos em torno do nome Cação nos mercados de peixe são tão grandes que em 2018 a revista Super Interessante publicou a matéria intitulada “Cação: a maior mentira da vitrine da peixaria” denunciando o mau uso do termo para vender espécies ameaçadas como se fossem espécies em menor risco (Vaiano, 2018).

Além do uso indevido do termo Cação já que pode induzir o consumidor ao erro e não deixar claro qual com base neste nomenclatura a espécie de cação está sendo vendida caracterizando desrespeito ao consumidor, o problema maior está no fato de que espécies que não são conhecidas como Cação são vendidas como se fossem, e esta fraude que tem consequências mais graves é possível porque as carcaças dos animais são totalmente processadas antes de serem embaladas e comercializadas tornando impossível a diferenciação da espécie apenas olhando para os pedações ou os filés, formato dos cortes que geralmente são comercializados.

A confusão é tão grande que em uma pesquisa publicada em 2015 detectou que as pessoas desconhecem ou não vinculam o termo Cação ao Tubarão, mais da metade dos entrevistados que alegaram já ter comido carne de Cação negaram ter comido Tubarão ou Raia (Bornatowski et al, 2015).

Ainda sobre o consumo do Cação, do Tubarão ou de Raias, lembrem-se sempre de que estes animais possuem grande importância no equilíbrio dos ambientes marinhos atuando como predador de topo nas cadeias tróficas (alimentares) e por conta disso também ele acaba acumulando metais pesados (como o mercúrio entre outros) e produtos químicos organoclorados (como PCBs, PCDD, Fs, DDT, entre outros), altamente prejudiciais à saúde humana, com graves consequências no sistema nervoso central ou no sistema endócrino podendo resultar inclusive em morte. Processo que é conhecido por biomagnificação (Coelho et al., 2010; Shelton, 2012; Estherkhm, 2015; Kibria e Haroon, 2015).

Infográfico: Biomagnificação, nas ampolas uma representação gráfica demonstrando o acúmulo do mercúrio no organismo dos peixes na cadeia trófica/alimentar (Desenho/Imagem: Rodrigo Maia-Nogueira – com base em Shelton (2012))

Evite comer Cações, Tubarões e Raias, se não pela conservação dos ambientes marinhos, pela sua saúde!!

REFERÊNCIAS

Almerón-Souza, F.; sperb, C.; Castilho, C.L.; Figueiredo, P.I.C.C.; Gonçalves, L.T.; Machado, R.; Oliveira, L.R.; Valiati, V.H.; Fagundes, N.J.R. 2018. Molecular identification of Shark meat from local markets in Southern Brazil based on DNA barcoding: Evidence for mislabeling and trade of Endangered Species. Frontiers in Genetics, 9(138). [PDF]

Barbuto, M. Galimberti, A.; Ferri, E.; Labra, M.; Malandra, R.; Galli, P.; Casiraghi, M. 2010. DNA barcoding reveals fraudulent substitutions in Shark seafood products: The Italian case of “palombo” (Mustelus spp.). Food Research International, 43(1):376-381. [Abstract]

Bernardo, C.; Adachi, A.M.C.L.; Cruz, V.P.; Foresti, F.; Loose, R.H.; Bornatowski, H. 2020. The label “Cação” is a Shark or a ray and can be a threatened Species! Elasmobranch trade in Southern Brazil unveiled by DNA barcording. Marine Policy, 116(103920):8pp. [Abstract]

Bornatowski, H.; Braga, R.R.; Kalinowski, C.; Vitule, J.R.S. 2015. “Buying a Pig in a Poke”: The problem of Elasmobranch Meat Consumption in Southern Brazil. Ethnobiology Letters 6(1):196-202 [PDF]

Coelho, J.P.; Santos, H.; Reis, A.T.; Falcão, J.; Rodrigues, E.T.; Pereira, M.E.; Duarte, A.C.; Pardal, M.A. 2010. Mercury bioaccumulation in the spotted dogfish (Scyliorhinus canicula) from the Atlantic Ocean. Marine pollution bulletin, 60(8), 1372–5. [Abstract]

Esyherkhm. 2015. The Food Chain: Bioaccumulation and Biomagnification (Part 2). Environmental Policy Today: Let´s Talk (Dirty) Water : The blog on water pollution. [Link]

Kibria, G.; Harron, A.K.Y. 2015. Pollutant´s Bioaccumulation in Sharks and Shark Seafood Security. ResearchGate online publication. [Reserachgate]

Lacquet, J.L.; Pauly, D. 2008. Trade secrets: Renaming and mislabeling of seafood. Marine Policy, 32(3):309-318. [Abstract]

Shelton, B. 2012. Bioaccumulation & Biomagnification: When bigger isn´t better. R.J. Dunlap Marine Conservation Programme. Shark Research, University of Miami. [Link]

Vaiano, B. 2018. Cação: a maior mentira da vitrine da peixaria. Revista Super Interessante. [Link]

Wong, E.H-K.; Hanner, R.H. 2008. DNA barcoding detects Market substitution imn North American seafood. Food Research International, 41(8):828-837 [Abstract]

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Mergulhador e apaixonado pelos oceanos desde a infância.
Desde a década de 1990 está envolvido em ações e pesquisas relacionadas com a biota aquática, tendo sido coordenador de resgate do Centro de Resgate de Mamíferos Aquáticos (CRMA) do Instituto Mamíferos Aquáticos (IMA) e fundador do Centro de Pesquisa e Conservação dos Ecossistemas Aquáticos (Biota Aquática) e do EcoBioGeo Meio Ambiente & Mergulho Científico, e ao longo dos anos participou de projetos de pesquisa e de consultoria na ambiental em parceria com diversas instituições.
Também atua como instrutor de mergulho SDI e PADI.
Tem como objetivo, além de produzir informação de qualidade fomentar o reconhecimento e a qualificação dos mergulhadores científicos.

About Rodrigo Maia-Nogueira

Mergulhador e apaixonado pelos oceanos desde a infância. Desde a década de 1990 está envolvido em ações e pesquisas relacionadas com a biota aquática, tendo sido coordenador de resgate do Centro de Resgate de Mamíferos Aquáticos (CRMA) do Instituto Mamíferos Aquáticos (IMA) e fundador do Centro de Pesquisa e Conservação dos Ecossistemas Aquáticos (Biota Aquática) e do EcoBioGeo Meio Ambiente & Mergulho Científico, e ao longo dos anos participou de projetos de pesquisa e de consultoria na ambiental em parceria com diversas instituições. Também atua como instrutor de mergulho SDI e PADI. Tem como objetivo, além de produzir informação de qualidade fomentar o reconhecimento e a qualificação dos mergulhadores científicos.

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